Alimentos são melhorados a partir de resíduos do pescado
Imagine que você tenha comprado um filé de peixe e decidiu guardá-lo no congelador para só depois usá-lo, mas acabou lembrando dele apenas alguns meses depois. O normal é que, após tanto tempo, a carne tenha perdido suas qualidades e não possua mais a mesma suculência ou até o peso de antes, devido ao processo de deterioração e à atividade de micróbios.
Para solucionar esse problema, pesquisadores do Laboratório de Tecnologia do Pescado (LATEPE) da Universidade Federal do Ceará têm desenvolvido revestimentos e filmes feitos a partir de moléculas encontradas nos próprios pescados e em seres marinhos como algas. Envolto por essas moléculas, o mesmo filé de peixe, por exemplo, teria uma carga microbiana duas vezes menor que a normal e, consequentemente, maior durabilidade.
Essa sobrevida dada ao alimento, com o aumento do tempo de armazenamento e a melhora da qualidade do produto, ocorre por conta das moléculas utilizadas pelo laboratório: a partir de componentes como quitosana, gelatina e colágeno é possível produzir revestimentos e filmes que tenham atividade antimicrobiana, evitem a perda de água da carne ou ainda que sejam antioxidantes.
“No congelador, o pescado perde água por sublimação [mudança de estado sólido para gasoso, sem passar pelo líquido], e o filme ou o revestimento pode ser a camada protetora que evita essa perda de água. Se ele perder água, perde suculência, peso e qualidade”, explica o coordenador da pesquisa, Prof. Bartolomeu de Souza, que comanda o Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Pesca.
Outro problema que os revestimentos podem evitar é o da oxidação lipídica (ou seja, das gorduras), um dos principais processos de degradação dos peixes, que resulta em alterações de cor, cheiro e valor nutritivo. Oxidado, um pescado perde a capacidade de ser consumido, uma vez que pode até produzir compostos tóxicos prejudiciais à saúde.
“O pescado é extremamente perecível, devido a uma alta atividade de água e um alto grau de insaturação dos ácidos graxos, podendo essas alterações ocasionar possíveis mudanças na coloração do filé. Se o pescado for gordo, ele vai deixar de ser branco e ficar amarelado”, exemplifica o pesquisador. “Quando revestimos o pescado com essa solução [desenvolvida no LATEPE], se ela possuir atividade antioxidante, vai reduzir esse problema.”
Sustentabilidade
A pesquisa baseia-se na utilização de subprodutos da indústria pesqueira, como casca de caranguejo, escama da tilápia e resíduos do camarão. Com isso, há a criação de um ciclo sustentável de produção, já que esses subprodutos, que seriam provavelmente descartados, acabam retornando à indústria na forma de melhorias para os próprios pescados. Além disso, o laboratório também faz prospecção de moléculas em algas originadas de cultivo.
No caso do caranguejo, por exemplo, a casca é processada, resultando na produção de uma farinha. Dessa farinha, são removidos todos os minerais, proteínas e pigmentos, para se chegar à quitina. Por meio do processo de desacetilação (remoção do grupo químico acetila), a quitosana é produzida para finalmente servir como base para o revestimento em que o filé de peixe será mergulhado. Quitina e quitosana são polímeros atóxicos e biodegradáveis.
O grau de desacetilação (que atualmente está em 92%, pela pesquisa do LATEPE) é importante para definir a forma como o revestimento vai atuar no pescado. “Quanto maior o grau, melhor vai ser o filme. Ele vai ser menos solúvel em água e vai ter melhor atividade antimicrobiana”, ressalta Diego do Vale, doutorando e integrante da pesquisa.
Outro exemplo é a produção de filmes a partir da escama da tilápia, da qual é extraída a gelatina, espécie de pó fino. Após a caracterização térmica e química desse componente, os pesquisadores produzem o filme que revestirá o pescado. Assim como a quitosana e as outras moléculas pesquisadas, a gelatina também é comestível, não trazendo qualquer prejuízo ao consumo do pescado.
Mercado
A vantagem da pesquisa do LATEPE ‒ desenvolvida em parceria com a EMBRAPA Agroindústria Tropical e com o Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular da UFC ‒ torna-se evidente pelo retorno econômico e produtivo para a indústria pesqueira, mas são muitos os passos até que o revestimento chegue de fato ao mercado. “Temos que buscar os resíduos, extrair deles as moléculas, caracterizá-las quimicamente e só então produzir o filme”, detalha o Prof. Bartolomeu de Souza.
Além disso, há diferentes características que podem ser exploradas em cada molécula. “Se eu quero que o alimento não perca água, o filme deve ter baixa permeabilidade ao vapor de água. Se quero que não passe oxigênio pelo filme para o alimento, deve haver baixa permeabilidade ao oxigênio. Além disso, é preciso avaliar a cor, solubilidade, atividades antioxidantes e antimicrobianas”, diz.
Um dos próximos passos da pesquisa será a tentativa de diminuição do custo de produção, sem a perda de qualidade já alcançada com os materiais desenvolvidos. Para tanto, uma revisão da quantidade de reagentes empregados nos revestimentos deverá ser feita.
Além disso, uma nova aplicação da pesquisa está planejada, com a utilização da quitosana em conjunto com outra molécula, a carragenana, extraída de macroalgas. A ideia é produzir um nanofilme que possa servir como revestimento para o filé de atum, com camadas intercaladas, utilizando as características das duas moléculas para também reduzir o crescimento de bactérias no pescado.
Pelo menor custo de produção, a expectativa é que o novo nanofilme possibilite uma maior adesão por parte da indústria. A quantidade de meses de sobrevida que o revestimento poderá garantir ao pescado na prateleira, porém, é algo que deve ser constatado apenas ao fim da pesquisa, previsto para 2021.
O termo pescado aplica-se a peixes, crustáceos, moluscos, anfíbios, répteis, equinodermos e outros animais aquáticos usados na alimentação humana.
Fonte: Ascom da UFC